quarta-feira, 9 de março de 2011

Serpa Pinto, 08-03-1969

"Aqui Terras do Fim do Mundo"

Serpa Pinto, 8 Março 1969

Para seus queridos e saudosos pais,
Escreve Mário;

Devem estar alarmados com a minha demora em dar noticias, mas não foi por desmazelo, mas sim por falta de tempo. Como disse no bate-estradas ia sair para o mato numa coluna de reabastecimento e essa maldita coluna demorou 20 dias devido ás chuvas. Só para passarmos uma ponte estivemos quatro dias, a lama era tanta que chegava quase ás portas dos carros.
Foi preciso vir a Junta Autónoma das Estradas com 150 pretos "recrutados" na Sanzala para conseguirmos passar.
Parecia quase um filme bíblico, tanto preto a cortar árvores, a traze-las às costas e deitar na picada. Espectáculo fantástico. Felizmente que as chuvas estão a acabar, mas estes caminhos estão impossíveis, só água e lama, um tipo está-se sempre a enterrar. Em parte a coisa compensou pois palmei 2.100.$, dei 300$ ao ajudante e com o resto comprei um malão, umas calças e camisa, mais uns sapatos. Fiquei com perto de mil escudos que é para comer e beber bem nestes oito dias que estamos em descanso em Serpa Pinto. Calcule que nestes dias a ração de combate só trazia latas de chouriço e merenda de carne, estas ultimas enjoativas aos quatro meses de comissão. Nestes vinte dias a minha alimentação era: uma lata de leite e outra de chouriço e meia dúzia de bolachas. Claro que a malta chega à cidade só pensa em desforrar-se dos trabalhos e da fome que passou. O que nos aguenta durante a viagem é a cerveja e o vinho com açúcar surripiado das cargas.
Quanto à minha situação nada sei nem me preocupo, agora é só deixar correr e marfim. No fim do mês de Abril é que recebo o ordenado desde 15 de Março, portanto só no fim do mês é que devem receber a pensão. Quanto à detenção foi o seguinte:
Não sei como, mas estes tipos sabem que se eu quisesse e com os conhecimentos que tenho, que me punha no outro lado em menos de 3 dias e então toca a pôr o Mário sem autorização de sair do quartel. Mas como eu são Mário (o homem que faz desaparecer as coisas misteriosamente), sou um maluco com juízo e não vou em fitas deixei-me estar muito quieto a aguardar os acontecimentos, e assim continuo. Mas como o Marcelo Caetano vem cá, creio que isto fique em nada.
No próximo dia 14 torno a sair na coluna, é mais uma, e entretanto todos nós esperámos o dia de regresso a Luanda que não se sabe quando será. Como o "Cuando Cubango" é considerado uma das piores zonas de terrorismo, movem-se todos os padrinhos para não virem cá parar e a malta tem de aguentar.
Junto segue uma foto tirada junto ao aquartelamento da "N.Requinha" e portanto perto da fronteira com a Zâmbia, como podem verificar ainda estou inteiro e de óptima saúde graças à cerveja Nocal e Cuca.
Então a "Supico Pinto" deu uma palmada de 30.000 dele? - Sabe qual foi a prenda do M.N.F. nada! Nem sequer uma caixa de fósforos. Não percebo como os papalvos ainda dão dinheiro para essa cambada de vigaristas.
Nada mais por hoje, talvez eu antes de sair para a coluna mande uma camisola amarela !
Beijos para os meninos e para os pais do
Mário

7 comentários:

  1. Meu Caro:
    Pelo que li e entendi no seu blog, é irmão de um ex-Combatente que pretende fazer uma simples homenagem a seus pais que, como tantos milhares, sofreram com o cenário de guerra em que seus filhos estiveram envolvidos. Espero que o seu irmão não reaja mal ao seu gesto e que entenda a finalidade deste blog, embora seja sempre arriscado porque se arrisca a ferir susceptibilidades.
    Faltam aqui os comentários que seu irmão deoxou de fazer em Abril de 2010. E digo faltam porque, quer se queira ou não, os comentários funcionam sempre como encorajamento a um trabalho e até o completam, independentemente dos pontos de vista de quem comenta.
    Quero realçar que também sou ex-Combatente e que como tal reconheço a veracidade dos pomenores que o seu irmão narra. Não porque os conheça mas porque era exactamente assim que as coisas se processavam.
    Tem pormenores muito curiosos, e de tal maneira que dariam para fazer um blog que poderia ir muito para além das carta. Mas isso, meu caro, só o poderá fazer quem por lá passou. E quem não passou, por muito que puxe pela imaginação, nunca poderá sequer imaginar o que se sentia no terreno fosse em que aspecto fosse.
    Já agora, e porque o blog se destina a homenagear os seus pais pelo sofrimento por que passaram, e porque muita gente não se lembra sequer disso, digo-lhe o seguinte: conheci um casal com dez filhos, dos quais seis rapazes, e todos eles passaram pela guerra de África. Quatro em Angola e dois na Guiné.
    Mas isto são apenas"pequenos pormenores" de que muitos ainda não se lembraram!
    Meu caro, bem-haja pela sua homenagem.
    Um abraço

    Antonio Sousa

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  2. È exactamente assim como disse. Aideia é homenagear os meus pais e também a nós mesmos (irmãos) que ainda meninos vimos nosso irmão partir para terras distantes sem enterdermos muito bem porquê. Ninguêm nos procurou, ningu~em nos apoiou, nessa altura não se falava em psicologos, aliás não se falava em nada, falar sobre este e outros assuntos era proibido. Respeito todos os combatentes que andaram por terras de Africa, também fui militar, mas tive a sorte de ter acontecido depois do 25 Abril de 74. O irmão que cometa aqui não é o que esteve no Ultramar mas sim outra das pessoas que como eu minha irmã e meus pais passámos por esta privação de ver um familiar querido longe e na guerra. Obrigado pela sua visita e no fundo também pretendo mostrar aqui o que foi o sofrimento de muitas familias que como a minha passaram por este drama. Um bem aja para si e a minha sincera admiração por si e por todos os ex-combatentes.
    Um abraço
    Henrique

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  3. Bom dia
    Este blog está mravilhoso
    Parabéns camarada

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  4. Obrigado, camarada pelo elogio. Foi uma ideia que fui desenvolvendo lentamente após a morte dos meus pais. A ideia aqui é relatar a dor de uma familia Portuguesa que se vê privada do seu filho, e de todo o sofrimento que a todos nós isso trouxe, pois só assim se compreende o guardar destas cartas por parte de meuis pais.Só tenho pena de não ter as que eles escreviam para o meu irmão, mas essas devem-se ter perdido por terras de Angola. Brevemente chega a data de publicar outra carta. Um abraço e mais uma vez obrigado pelo elogio, camarada.

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  5. Caro Henrique...
    Não resisti e mergulhei nos aerogramas do meu pai... tanto ficou por dizer... tanto estava nas entrelinhas naqueles aerogramas...
    Há uns tempos um amigo criou um blogue fantastico:
    www.abombabandonada.blogspot.com
    sobre a temática da guerra colonial.
    Este aerograma fez-me recordar o poema "Tres dias, tres noites" do meu pai.
    Do muito que ele me contou acho que muito ficou ainda por dizer...
    Um beijinho
    Helena

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  6. www.bombabandonada.blogspot.com

    (rectificação)

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