quinta-feira, 17 de junho de 2010

Ambrizete 17-06-1968

Meus queridos pais:

Cá recebi a vossa carta e se vocês estão surpreendidos por não receber noticias minhas, eu também estava, pois escrevi no mês passado e não recebi resposta, não compreendo como a carta não chegou aí.
Eu cá me encontro de óptima saúde, só não tenho aquela alegria que tinha pois sucedeu uma coisa terrível, um facto que eu nunca julguei presenciar, que me abalou profundamente, vi guerra, rapazes mortos, cortados, despojados das roupas, vi um lago de sangue, ganhei um ódio mortal aos pretos.
Estava em "Bessa Monteiro" no dia 31 de Maio tínhamos chegado no dia anterior, quando se soube que em "Quibala" que fica a 60 kms, tinham atacado uma coluna e que havia muitos mortos, fizeram uma coluna de socorro e como não tinham carros suficientes requisitaram o meu e o do meu colega, quando lá chegámos já tinham levado os mortos para o quartel que fica a 12 kms.
Passámos pelo lugar do ataque e a picada era um lago de sangue, quando lá chegámos soubemos que tinham saído três carros, duas Berliet e um Unimog para "Quimaria" que fica a 25 kms.
Iam 23 rapazes, aquilo para aqueles lados é só morros e no cimo desses morros estavam duas metralhadoras pesadas, enquanto que escondidos no capim estavam os turras mesmo junto à picada, ombro a ombro eram mais de cento e cinquenta, quando entraram na zona de morte dois carros começou o baile, os condutores foram logo para o diabo, os soldados a saltar e a cair no meio deles.
O outro carro ficou para trás e começaram a disparar quando acabaram as munições o carro fugiu para o quartel e no quartel ouviram o combate, pois não vieram ajudá-los pois não tinham carros, quando lá chegaram estavam sete mortos entre eles um furriel. Tentaram incendiar os carros mas não conseguiram em virtude da reacção que houve e os tipos fugiram, catorze feridos, só dois escaparam, mesmo assim mataram nove pretos, mais uma vez os nossos soldados mostraram que são grandes guerreiros, a um soldado para tirarem um anel cortaram-lhe o braço.
Passado duas horas a aviação veio para bombardear a "Mata da Sanga" que fica aqui à beira e tem 80 kms de extensão e nós ficámos em "Quibala", no dia seguinte fizeram uma batida com mais de trezentos homens, andaram cinco dias, mas já nada viram, só cubatas e lavras.
Depois trouxemos os mortos para "Ambrizete" vieram no meu carro e foi a primeira vez que chorei em Angola, mas não foi só a mim que isso sucedeu, no regresso quando passávamos por acampamentos estavam soldados a fazer guarda de honra, e em todas as caras as lágrimas escorriam por rapazes que não conhecíamos.
Em "Ambrizete" foi impressionante, na rua principal soldados de um lado e do outro enquanto o clarim tocava, foi quando não aguentei mais, os meus nervos cederam, os pretos da Sanzala estavam a ver e entre eles um estava a rir como o espectáculo fosse engraçado, vi aquele sangue à minha frente, vi os rapazes cortados, parei o carro e ia dar um tiro no tipo mas quando cheguei ao pé dele ouve uma voz dentro de mim que me disse para não disparar, mas esmurrei-lhe a cara com uma coronhada e o tipo foi preso.
Ainda agora à noites que estou a dormir e acordo com pesadelos, vejo-me deitado no meio de sangue, isto é guerra e não sei quantos anos ainda vai demorar.
É pena o Pinto Nunes ir para a "Guiné", aquilo está péssimo, mas não lhe diga isso, diga-lhe já está melhor, passa-se como o diabo.
Quanto ao Beleza, esse vem passar umas férias, e o Reinaldo onde está ?
Se o vir diga-lhe que o Chico Malvar está cá em Angola.
As revistas já seguiram, não me diga que se extraviaram.
O Avô está melhor ? e os miúdos ?
Por hoje é tudo cumprimentos para a malta do velhinho Académico
Um abraço do seu filho

Mário

Ambrizete, 17-06-1968

Minha querida mãe:

Recebi a sua carta e lamento que não tenha chegado aí a carta que lhes escrevi à mais de 15 dias, mas a culpa não é minha, se ás vezes demoro a escrever é por não me encontrar cá, vou fazer uma coluna e só passado uma semana é que regresso e leio as cartas que cá tenho.
Quanto a mim a minha saúde vai boa, só gostava de ter dinheiro para ir passar um mês pois já tenho saudades disso.
Gostei muito de saber que o Zé Manel foi seleccionado, é preciso passar da 4ª classe.
A Luísa e o Rique estão bem ?
Receba muitos beijos do seu filho

Mário