domingo, 23 de janeiro de 2011

Serpa Pinto. 21-01-1969

Querido Pai:

Saúde e felicidades são o meu desejo.
Cá recebi a sua aflitiva carta que compreendo... No entanto nada de desagradável sucedeu ao meu físico. Soube agora, ao regressar do mato, que me tinham cortado a pensão e o meu vencimento, em consequência de um acidente que tive em Novembro. Vou tentar por escrito explicar-lhe as causas, consequências, e maquinações, destes "senhores" do Exército, mas antes, esclareço que em acidentes com viaturas da tropa o condutor "é sempre culpado"!
Tinha chegado a "Serpa Pinto" depois de uma viagem de 17 dias, e como sempre, carregado de lixo, fome, e vontade de dormir. No entanto, antes de poder cuidar de mim, tive de ir descarregar um material ao Quartel da Intendência. Já no regresso, e ao chegar a uma ponte surgiu o estúpido do acidente, apareceu um carro contra a mão e a única coisa que podia fazer era travar, no entanto, os carros depois de tantos dias a arrastar-se pela areia chegam mais estourados do que saiem e quando tentei travar os travões não obedeceram.
São daqueles acidentes em que se joga a vida em segundos e eu só tinha duas hipóteses: Espetar-me contra o carro civil, ou desviar-me e enfiar o carro no rio, e escolhi a segunda. Desviei-me, abri a porta do carro, saltei e adeus minha linda "Mercedes".
O carro não caiu ao rio pois foi detido por uma árvore e ficou todo amachucado. Quanto a mim, tornei a ter sorte, só umas arranhadelas. Já não teve tanta sorte, um preto que seguia em cima do carro, pois ficou todo amachucado. Como consequência levantaram-me dois autos: -Um pelo esbarramento, disseram-me se queria pagar os prejuízos, claro que me recusei. - O segundo por excesso de velocidade, e que em virtude disso o preto tinha ficado ferido, "Friso que este auto é devido à Acção Psico-Social" que é formula que descobriram para calar a boca aos "Defensores dos Negros".
Resumindo: Dois autos, mas o que mais me aborrece é dizerem que vinha com velocidade a mais. Sim vinha a 70 kms, mas não se lembram que já não comia uma refeição quente à 17 dias, que se neste tempo todo dormi três dias foi muito!!! Isto não conta, bateu paga.
Comigo não dá certo, não tenho medo, os autos seguiram e quando for responder saberei falar e direi muitas coisas que desconhecem no Quartel General.
Nesta secção, tenho muitos colegas a pagar prejuízos por esbarramentos que tiveram, devido ao sono. Alguns pagam com medo de levar prisão, outros são como eu, não vão em conversa.
Não fiquem preocupados aí em casa, pois eu sou um tipo com sorte, além disso, sabe-se que o Caetano vem cá e com ele, uma amnistia que arquiva esta porcaria toda. Além disso, tenho o Capitão da minha companhia que em "Luanda" mexe a coisa. Isto é uma porcaria de uma guerra em que meia dúzia de matulões teêm interesses. Só gostava de ser tipo capaz de escrever um livro... Que escândalo!!!
Sinceramente tudo que se está a passar não me assusta, já não sou maçarico. Quase 13 meses de Angola!!! - Ambrizete, Bessa Monteiro, Baka, Quibala, Toto, Quimaria, Tomboco, Lufico, Quinzau, 2ala, Quipedro, Quicabo, Nambuangongo, S. Salvador, Cuito, Dima, Mavimga, N`Requinha, Rivungo, etc, etc, já conheço mais de Angola do que qualquer atirador.
Esta é a nossa missão, percorrer Angola, levando comida e munições, portanto não é a porcaria de uma participação que me assusta. Estou farto de lidar com "chicos" de galões.
Podem cortar o vencimento, a pensão, tudo o que quiserem, eu só quero acordar todas as manhãs com o céu da boca quente.
Acho que é o que os pais também querem, não é verdade? Já lá vão 13 meses e o tempo vai passando.
Quanto à guerra, agora está um pouco pior, por acidente, rebentou uma granada e matou sete soldados. Também fizeram umas emboscadas e mataram alguns dos nossos, em contra partida, quando a tropa ia recolher uma população, soaram os tiros e adeus população, cento e tal pretos para o país das caçadas eternas.
Este batalhão tem em 12 meses 24 baixas, deve ser o que tem presentemente o record cá em Angola. Com nós os tipos ainda não se meteram.
Quando perderemos este privilégio?
Vou terminar, nada de preocupações, pois tudo corre bem, e "ENTRE MORTOS E FERIDOS, ALGUÉM HÁ-DE ESCAPAR"
Um abraço do seu filho
Mário.


terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Serpa Pinto 01 - 01 - 1969

"Aqui Terras do Fim do Mundo"

Para seus queridos e saudosos pais
Escreve: Mário

Esta é a primeira carta que escrevo no Ano de 1969, desejo que todos aí em casa tenham entrado este ano tão bem ou melhor do que eu entrei.
Felizmente estas festas correram maravilhosamente, e a malta quase que não se lembrou de que estava longe da família. Na véspera de Natal, a ementa oferecida cá pelo batalhão foi ás 17.30h: jantar, arroz e cabrito assado. Ás 11.00h da noite era a ceia de Natal, no entanto, à ultima da hora, houve uma zanga, entre a nossa secção e o comandante do batalhão, e nós, em sinal de protesto não comparecemos à ceia.
Não calculam a bronca que isto deu, pois estavam cá o Governador do Distrito, as tipas do M.N.F. (Movimento Nacional Feminino), etc, mas nós, não saímos da caserna.
O nosso alferes, ofereceu 10 grades de cerveja e umas garrafas de whisky, a malta, comprou champanhe, Porto, etc, mandámos assar 4 leitões e foi aquela máquina.
O nosso alferes, também não compareceu à ceia do Batalhão, ficou com a malta, nunca passei uma noite de Natal levantado até tão tarde, eram 5 da manhã quando fomos para a cama, todos com uma grande bebedeira, cantámos, dançámos, foi em grande, os próprios soldados do Batalhão vieram até à nossa caserna ver a nossa festa.
Foi um escândalo a nossa rebeldia, mesmo os civis comentaram no dia seguinte o assunto, pois este comandante é tímido. Ele diz que quem manda no distrito do "Cuango Cubango" é ele, aliás o apelido dele é significativo "Bafo de Onça", deve ser o tipo mais indecente que existe na tropa, uma vez disse que prefere perder um homem a uma munição. Quando nós para cá viemos o tipo quis levantar cabelo, mas com nós o tipo não brinca.
No dia 25, e para recuperar o que gastaram na véspera a ementa foi: arroz de bacalhau e massa com carne, a mim não me apanharam pois apesar da ementa ser deliciosa, eu não gosto de arroz.
De castigo por nós não comparecermos à ceia, o tipo queria que saíssemos para a coluna no dia 30 que era para passarmos o Ano na mata, mas o nosso alferes não concordou, e assim saímos hoje no dia 1.
De qualquer das maneiras o tipo estragou-nos os planos, pois tínhamos um jantar marcado para o dia 4, data em que fazemos um ano de comissão, e teve de ser adiado até regressarmos.
Na passagem de Ano houve cá baile!! isto é coisa inédita cá para estes lados, mas veio um conjunto de "Silva Porto" e por milagre apareceram cá mulheres e foi em grande.
Também foi um grande escândalo, as mulheres todas bêbedas, inclusive, as mulheres dos oficiais, aquilo foi só visto.
Mas no meio disto tudo, o importante é que passei umas festas muito agradáveis, no entanto o que é bom sempre se acaba, e às 4 da tarde, rola para mais uma coluna, que deve ser a ultima.
Quanto às notas do Zé Manel, não digo que sejam más, pois isso era desiludir o miúdo, no entanto são fracas, tem de apertar com ele para melhorar.
Que se deixe de "basket" e do "Académico", pois isso não é futuro.
A minha encomenda, já perdi as esperanças, pois já escrevi duas vezes e nem resposta tive, mas vou tornar a faze-lo.
Beijos do:
Mário
p.s. por dificuldades de acesso à internet esta carta só foi publicada ao dia 4