sábado, 30 de julho de 2011

Serpa Pinto 30-07-1969

"Das Terras do Fim do Mundo"

Escreve: Mário

Queridos pais:

Espero que ao receberem esta minha carta se encontrem de saúde que eu felizmente bem.
Ainda escrevo das "Terras do Fim Do Mundo", mas parece que está para breve a nossa rendição. O Capitão foi de férias e deixou um papel para o Alferes nos render. Esta porcaria da tropa é toda feita à base de pedidos e outras coisas mais.
O nosso Capitão é muito boa pessoa e aqueles tipos em Luanda não o largam, uns andam a tirar a carta, outros são casados, etc, etc. Eu sei lá quantos motivos alegam para não vir para cá. O homem diz que não tem coragem para os mandar para cá. Enfim nós que cá estamos é que temos de aguentar, além de mais ainda há o problema das passagens que andam à volta de 1.000$00, e como tem de ser pagas pela companhia temos também o primeiro contra nós. Isto é um problema muito complexo e giram tantos interesses à volta desta coisa que mais vale o pobre do soldado estar calado.
Com respeito ao meu auto vou no dia 6 para Luanda pois tenho de estar lá no dia 12 para ser ouvido. Mas ainda não é desta vez que a coisa fica resolvida pois ainda tenho de lá ir outra vez e só então a coisa será solucionada. No entanto não escapo sem um castigo. Mas isso não conta, esta coisa está quase a acabar e a mim o que me interessa é chegar vivo e normal como para cá vim.
Infelizmente já vi muitos rapazes ficarem cá para sempre, outros são evacuados com doenças incuráveis, e alguns que ficam malucos. Ainda à pouco tempo um rapaz do Carvalhido foi maluco para aí. Por conseguinte não me importa nada com isto, o que interessa é saúde e dinheiro no bolso, o resto é paisagem.
Amanhã, sábado estou convidado para ir almoçar a casa de um amigo de cor que trabalha no governo do distrito. Como vou a Luanda ele quer que vá lá almoçar. Vamos comer "moamba de galinha", este prato é típico cá de Angola. Com muito gindungo é de comer e chorar por mais. A malta começa a comer  à 1 hora e só acaba lá para as tantas. Gostava que assistissem cá a um almoço, é sempre a vir coisas diferentes.
Sinceramente lhe digo que a tropa cá em Angola tem mais amigos  nos pretos que nestes cães brancos. As miudas dizem que só ligam aqueles que tem divisas e galões amarelos nos ombros, os familiares ainda são piores. Pelo menos nós dos "transportes" ainda somos os que estamos menos mal, pois estes civis brancos precisam muito de nós na picada. No meio disto tudo é tamanho o jogo de interesses e tenho visto tanta coisa que contado ninguém acredita. É preciso cá andar para compreender muita coisa nesta guerra e mesmo assim não se chega a saber nada.
Com respeito à minha situação futura não me agrada a hipótese de trabalhar em Portugal, pois digam o que disserem dai é sempre a mesma porcaria. África é uma hipótese, pois basta dizer que enquanto aí um motorista ganha 3.000$00, cá ganha 7.000$00, bem sei que a vida é mais cara mas vive-se melhor. Mas depois de acabar esta triste vida e me ver liberto destas cadeias que oprimem um individuo, resolverei qual o caminho a seguir.
E por hoje é tudo, beijos e saudades para todos do: 
Mário

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Serpa Pinto 18-07-1969

"Das Terras do Fim do Mundo"

Escreve: Mário

Queridos Pais:

Espero que ao receberem esta minha carta, se encontrem de óptima saúde que eu felizmente bem.
Como podem verificar ainda me encontro no "Cuando Cubango" sem saber a data em que regresso a Luanda. A nossa rendição é difícil pois além da distância a que nos encontramos de Luanda, há também o problema dos tipos que se encontram na companhia que andam de volta do capitão a pedir para não virem para cá, pois têm medo.
Quanto ao ter cuidado não adianta, pois nunca se sabe quando parte o primeiro tiro nem a quem é dirigido, e o mal é que o primeiro nunca falha. A única coisa a fazer é encarar esta coisa com a maior descontracção e nunca pensar que podemos morrer a seguir. Pela minha parte creio que não nasci para morrer cá e portanto não ligo nenhuma a isto, limito-me a deixar correr o tempo.
Os meses da pensão que estão em atraso, creio que estão cancelados enquanto o auto não for resolvido. Nós cá recebemos 150$00 de subvenção de campanha e este mês não nos pagaram, não consigo perceber as contas destes tipos, vamos a ver se pagam para o próximo mês.
O meu auto nada posso fazer pois tem de seguir a burocracia.
O mês passado, um colega quando seguia de Luanda para Úcua com maçaricos que tinham chegado da Metrópole, virou o mesmo e matou 3 furrieis e 20 e tal feridos. Como vêem uma pessoa para ter complicações tanto faz Luanda como aqui.
Por cá, e nesta zona estamos na época do frio mas só de noite pois de dia faz um calor dos diabos. De noite durmo com três mantas. É um clima levado dos diabos e que dá cabo da saúde.
Acho que a carta que escrevi á mãe não era nada lacónico, só que não tenho culpa que o pai não perceba. Também lhe digo que nunca me pediram nada e se ás vezes mando alguma coisa é porque quero pois como não tenho feitio para guardar dinheiro, mando para a mãe comprar alguma coisa que precise.
Simplesmente acho que o pai não se deve opor a que a mãe compre pulseiras ou qualquer outra coisa, pois eu quando lhe mando dinheiro é que digo que o mesmo é para comprar tal coisa e portanto não é a mãe que compra de livre vontade, pois ela simplesmente se limita a comprar o que eu digo.
Beijos para os meninos e para os pais
Mário
  

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Serpa Pinto 04-07-1969

"Das Terras do Fim do Mundo"

Para os seus queridos pais:
Escreve: Mário

Espero que esta carta os vá encontrar a todos de óptima saúde, que eu felizmente bem.
Devem estar preocupados com a minha demora em responder à vossa carta, mas a mesma foi-me entregue quando estava em viagem, e só chegámos no passado dia 1.
Foi mais uma coluna, mas esta com más recordações.
Saímos de "Serpa-Pinto" no dia 14 de Junho e passei o S. João em "Mavinga". A malta fez uma grande fogueira e divertimo-nos o melhor possível.
No dia 27 quando regressavamos do "Dima" ao "Cuito Cuanavale" é que foi bonito.
Na nossa coluna seguiam também carros civis, que como sempre são uns tipos cheios de pressa e como a Brigada de Engenharia Civil saía do "Dima" com a escolta de milícias, fizeram uma coluna saindo mais cedo duas horas do que os carros da tropa, e foi a nossa sorte.
Os turras tinham uma emboscada montada para nós, mas como passaram aqueles primeiro foram os que levaram.
Quando lá chegámos havia sete mortos e cinco feridos. Dos sete um era um condutor branco que levou um tiro na cabeça. Os outros eram: 2 mulheres, 2 crianças e 2 homens todos pretos, todos crivados de estilhaços de granadas.
Uma menina morreu nos meus braços quando a segurava para o enfermeiro lhe fazer o tratamento. Meu Deus, ainda agora sinto horror ao recordar aqueles momentos trágicos. Mas que guerra fazem estes bandidos quando assassinam os da cor deles ? Qual será a ideia deles.
Cá o problema é as granadas, pois os turras poucos tiros dão, mas quando soam os primeiros a malta manda-se abaixo dos carros, então os tipos lançam as granadas e, adeus vida !!
Bem no meio disto tudo tornamos a escapar e isso é que conta, a vida continua e no próximo dia 10 lá vamos para mais uma.
Creio que este mês já recebeu o aviso para levantar a pensão, pois já me foi descontada aqui.
Bem por hoje é tudo, saudades do 
Mário Luís


segunda-feira, 13 de junho de 2011

Serpa Pinto 13-06-1969

"Das Terras do Fim do Mundo"

Escreve: Mário

Queridos Pais:

Que esta carta ao chegar ao seu destino os vá encontrar de óptima saude são os meus desejos, que eu felizmente bem.
Cá recebí a vossa carta e tomei conhecimento das novidades que aconteceram no nosso burgo, quanto aos estudos do Zé Manel nada mais tenho a dizer, voçês aí sabem o que tem a fazer.
Quanto ás novidades por cá há muitas e das boas:
Assaltaram o S.P.M. (Estação Postal Militar) e roubaram segundo se consta 470.000$00, prenderam um furriel e um cabo que lá trabalhavam pois parece que foram eles que fizeram o desvio. - A segunda é o assalto a um avião da "D.T.A." por três tipos, que quando o mesmo ía fazer a escala em "Cabinda" o obrigaram a seguir para o "Congo Belga" onde aterrou.
A terceira novidade é relacionada com a nossa secção de transportes. No próximo mês começamos a fazer colunas na linha do sudoeste africano, ou seja junto à fronteira da "Africa do Sul".
Partindo de "Serpa Pinto", "Caiundo", "Cuangar", até ao "Mucusso". Por este motivo a malta já não quer ser rendida pois a coisa promete ser grande.
Pela minha parte ainda não resolví, se quando chegar a minha vez irei ou não. - Lá para o fim do mês devo ir a "Luanda" por causa do meu auto, depois é que vejo como as coisas lá estão.
Quanto à situação militar, a coisa está a aquecer pois os "turras" estão a experimentar os "maçaricos". No passado dia 10 atacaram o "Cuito Cuanavale", mas não causaram baixas.
Amanhã dia 14 vou sair em mais uma coluna, só devemos estar em "Serpa Pinto" no dia 30.
Como sabe pelos jornais o Benfica esteve em "Luanda" e foi a sensação, o Estádio dos Coqueiros esteve à cunha. - Para fazer uma ideia do que isto foi digo-lhe que se venderam bilhetes a mais de 10 contos. Uma loucura!!!
Cá o dinheiro anda ás mãos cheias. Também este é o país dos ladrões!!!
E por hoje é tudo, beijos para todos do 
Mário Luis
     

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Serpa Pinto 19-05-1969

Das "Terras do Fim do Mundo"

Escreve: Mário

Queridos pais:

Ainda continuo a escrever das "Terras do Fim do Mundo", já foram rendidos 6 homens da nossa secção, mas incompreensivelmente os 5 que estivemos na secção de "Ambrizete" ainda não fomos desta. - Somos os únicos da companhia que temos perto de 11 meses em zona operacional e portanto merecíamos ser os primeiros a ir para "Luanda".
Como é lógico, ficámos aborrecidos com a injustiça que nos fizeram e escrevemos uma carta ao capitão a dizer-lhe algumas verdades, no entanto, o tipo ficou furioso e agora a sermos rendidos seremos os últimos. - Para nós também já não importa, pois 7 meses passam depressa, e aqui ou em "Luanda" é igual, mas assim o tipo ficou a saber que não está a lidar com garotos.
Também se torna difícil a rendição, pois segundo noticias dos colegas que agora foram embora, anda tudo em reboliço na companhia, pois os "heróis do arame farpado" andam a chorar à  volta do capitão com medo de para cá vir.
O batalhão que cá estava foi rendido, levou menos de 30 homens que pagaram com a vida a "soberania" das Províncias Ultramarinas.
Agora veio um de cavalaria, oxalá se portem bem.
Quem dera que os "turras" não se metam com eles, mas não devem ter sorte pois os pretos gostam de apalpar o pulso aos "maçaricos". Qualquer dia temos festa, hoje saiu a coluna e eu fiquei a descansar, pois os "maçaricos" vem cheios de medo e andam sempre com o dedo no gatilho.
Mudando de assunto: Não compreendo como é possível que não obriguem esse menino a pegar num livro, não adianta chegar ao fim do período e bater-lhe pois o mal já está feito. Agora é que devia levar umas palmadas pois ainda à tempo.
No entanto vocês aí devem saber melhor o que tem a fazer do que eu, mas não devem dizer um dia mais tarde que ele não estudou porque não quis; mas sim por não ser obrigado.
Não compreendo como esse menino tem o tempo tão ocupado, que não possa estudar, talvez ande a tirar um curso de "basket" ou de qualquer outro desporto.
Nada mais por hoje, a não ser os desejos que esta carta os vá encontrar de óptima saúde
Beijos para todos do
Mário