Escreve: Mário
Queridos pais:
Espero que ao receberem esta minha carta se encontrem de saúde que eu felizmente bem.
Ainda escrevo das "Terras do Fim Do Mundo", mas parece que está para breve a nossa rendição. O Capitão foi de férias e deixou um papel para o Alferes nos render. Esta porcaria da tropa é toda feita à base de pedidos e outras coisas mais.
O nosso Capitão é muito boa pessoa e aqueles tipos em Luanda não o largam, uns andam a tirar a carta, outros são casados, etc, etc. Eu sei lá quantos motivos alegam para não vir para cá. O homem diz que não tem coragem para os mandar para cá. Enfim nós que cá estamos é que temos de aguentar, além de mais ainda há o problema das passagens que andam à volta de 1.000$00, e como tem de ser pagas pela companhia temos também o primeiro contra nós. Isto é um problema muito complexo e giram tantos interesses à volta desta coisa que mais vale o pobre do soldado estar calado.
Com respeito ao meu auto vou no dia 6 para Luanda pois tenho de estar lá no dia 12 para ser ouvido. Mas ainda não é desta vez que a coisa fica resolvida pois ainda tenho de lá ir outra vez e só então a coisa será solucionada. No entanto não escapo sem um castigo. Mas isso não conta, esta coisa está quase a acabar e a mim o que me interessa é chegar vivo e normal como para cá vim.
Infelizmente já vi muitos rapazes ficarem cá para sempre, outros são evacuados com doenças incuráveis, e alguns que ficam malucos. Ainda à pouco tempo um rapaz do Carvalhido foi maluco para aí. Por conseguinte não me importa nada com isto, o que interessa é saúde e dinheiro no bolso, o resto é paisagem.
Amanhã, sábado estou convidado para ir almoçar a casa de um amigo de cor que trabalha no governo do distrito. Como vou a Luanda ele quer que vá lá almoçar. Vamos comer "moamba de galinha", este prato é típico cá de Angola. Com muito gindungo é de comer e chorar por mais. A malta começa a comer à 1 hora e só acaba lá para as tantas. Gostava que assistissem cá a um almoço, é sempre a vir coisas diferentes.
Sinceramente lhe digo que a tropa cá em Angola tem mais amigos nos pretos que nestes cães brancos. As miudas dizem que só ligam aqueles que tem divisas e galões amarelos nos ombros, os familiares ainda são piores. Pelo menos nós dos "transportes" ainda somos os que estamos menos mal, pois estes civis brancos precisam muito de nós na picada. No meio disto tudo é tamanho o jogo de interesses e tenho visto tanta coisa que contado ninguém acredita. É preciso cá andar para compreender muita coisa nesta guerra e mesmo assim não se chega a saber nada.
Com respeito à minha situação futura não me agrada a hipótese de trabalhar em Portugal, pois digam o que disserem dai é sempre a mesma porcaria. África é uma hipótese, pois basta dizer que enquanto aí um motorista ganha 3.000$00, cá ganha 7.000$00, bem sei que a vida é mais cara mas vive-se melhor. Mas depois de acabar esta triste vida e me ver liberto destas cadeias que oprimem um individuo, resolverei qual o caminho a seguir.
E por hoje é tudo, beijos e saudades para todos do:
Mário